A segurança do cérebro: a próxima meta da nossa especialidade?

Nirav Kamdar, MD, MPP, MBA; Phillip E. Vlisides, MD; Daniel J. Cole, MD

Veja o artigo original no link a seguir: https://dev2.apsf.org/article/perioperative-brain-health-its-not-all-positive-attitude-exercise-and-superfoods/

Introdução

Após 35 anos da fundação da Anesthesia Patient Safety Foundation (APSF), relembramos do ditado de Macintosh de que nenhum paciente deve ser prejudicado pela anestesia.1 Articulado há mais de 60 anos, esse conceito estabeleceu a base fundamental da APSF, que refletia nosso chamado para a segurança, a vigilância e a busca incessante de resultados seguros. Naquela época, a meta era clara: abordar situações passíveis de mensuração, como parada cardíaca, hipóxia e erro humano. Embora as situações acima sejam importantes, o futuro da segurança do paciente é muito mais abrangente. Vamos começar com uma definição de segurança do paciente que modificamos com base em Gaba e Weinger:*

A segurança é a forma como atendemos os pacientes para evitar os prejuízos decorrentes dos processos de atendimento, e o comportamento das pessoas integradas ao sistema de saúde. A segurança é uma propriedade que surge a partir do sistema e que ocorre quando tentamos alcançá-la ativamente.*

*Apresentação de David Gaba e Matthew Weinger na reunião do conselho da APSF; permissão concedida para adaptação e citação por meio de comunicação pessoal.

David Gaba, MD, e Jeffrey Cooper, PhD, afirmam que a base do nosso sucesso no passado surgiu da confiança em padrões e diretrizes, soluções tecnológicas, fatores humanos e institucionalismo da segurança.2,3 Garantimos que nossa especialidade está na linha de frente do atendimento aos pacientes, abordando o que mais importa para eles: a longevidade da saúde. Trabalhamos como equipes ao longo dos cuidados perioperatórios e posteriormente para que os pacientes voltem para casa com a saúde funcional, psicológica e cognitiva aprimorada.

O combate ao delírio pós-operatório, um vilão oculto, é difícil e pouco definido, sendo um problema para as iniciativas de segurança da nossa especialidade. É evidente que ainda há muito para ser estudado sobre a fisiopatologia do delírio pós-operatório, o diagnóstico e a identificação, bem como as ferramentas para aprimorar a monitorização e o tratamento. Precisamos de recursos para pesquisas e uma estratégia de implantação para melhorar os resultados neurocognitivos após a cirurgia.

Como médicos perioperatórios, não podemos ignorar a dimensão do delírio pós-operatório. Os dados demográficos do envelhecimento da população dos Estados Unidos preveem que mais de 1/3 dos pacientes terá mais do que 65 anos. Nesses pacientes, o delírio pós-operatório apresenta uma incidência estimada de 5 a 50%, contribuindo para gastos de US$ 150 bilhões associados ao delírio pós-operatório nos Estados Unidos.4 Muitos desses casos podem ser evitados por meio de planejamentos de atendimento e práticas recomendadas.4

Padrões, diretrizes e tecnologia

Figura 1: Hipóteses fisiopatológicas do delírio pós-operatório. Desequilíbrio Neurotransmissor.

Figura 1: Hipóteses fisiopatológicas do delírio pós-operatório. Desequilíbrio Neurotransmissor.

Conforme Gaba e Cooper afirmam, grande parte da história de sucesso da anestesiologia em alcançar um nível de segurança seis sigma nos pacientes ASA1 é atribuída ao cumprimento das diretrizes e dos procedimentos cirúrgicos padrão por nossa especialidade.3 Duas declarações consoantes orientam nossa compreensão atual do delírio pós-operatório. O 2018 Perioperative Brain Health Initiative Summit Report (Relatório da conferência da iniciativa para a saúde cerebral perioperatória de 2018)5 identificou nossa compreensão atual dos fatores de risco de predisposição, incluindo declínio cognitivo ou demência, visão prejudicada, audição prejudicada, doença grave e infecção subjacente. Embora a fisiopatologia do delírio pós-operatório não tenha sido bem definida e não exista um biomarcador definitivo, os mecanismos interrelacionados, incluindo desequilíbrio do neurotransmissor, inflamação, resposta ao estresse, metabolismo celular, vulnerabilidade neurológica pré-existente e alterações na neurobiologia de rede (Figura 1), podem explicar por que a parte cirúrgica do atendimento contribui para essa incidência e gravidade dos resultados.6

A American Society of Anesthesiologists Perioperative Brain Health Initiative (Iniciativa de saúde cerebral perioperatória da American Society of Anesthesiologists) e as 2015 American Geriatrics Society Guidelines (Diretrizes de 2015 da American Geriatrics Society)7 recomendam uma triagem cognitiva como medida pré-cirúrgica e métrica de risco antes e depois da cirurgia. No âmbito pré-operatório, muitos especialistas defendem o uso do exame do estado mental ou de uma versão resumida dessa ferramenta de avaliação (MEEM ou miniexame do estado mental na Figura 2). Há diversas ferramentas disponíveis para o diagnóstico de delírio pós-operatório, cada uma com características específicas do operador do destinatário, incluindo o Confusion Assessment Method (CAM, Método de avaliação da confusão), o CAM-ICU, a Nursing Delirium Screening Scale (Escala de triagem do delírio) ou a Delirium Symptom Interview (Entrevista de sintomas de delírio).8 Ainda assim, o treinamento resumido geralmente resulta em taxas de diagnóstico impreciso para um problema que é conhecido por oscilar em gravidade em uma internação cirúrgica. Embora não exista um acordo sobre o uso de uma única ferramenta, os dois grupos recomendam treinamento e experiência adicionais nas ferramentas de diagnóstico de delírio pós-operatório para a equipe na linha de frente.

Figura 2: O teste Mini-Cog. Há dois componentes do Mini-Cog® que incluem uma pontuação por exatidão nas etapas "Desenho do relógio" e "Lembrar de três palavras", resultando em uma pontuação cumulativa que pode aumentar a detecção de comprometimento cognitivo. Há um total de cinco pontos possíveis no teste, sendo três pontos possíveis para a etapa “Lembrar de três palavras” e dois pontos para um relógio normal. Uma pontuação total de três ou mais indica uma probabilidade menor de comprometimento cognitivo. Direitos autorais do Mini-Cog®, Dr. Soo Borson (usado com permissão). Acesse mini-cog.com para obter mais detalhes.

Figura 2: O teste Mini-Cog. Há dois componentes do Mini-Cog® que incluem uma pontuação por exatidão nas etapas “Desenho do relógio” e “Lembrar de três palavras”, resultando em uma pontuação cumulativa que pode aumentar a detecção de comprometimento cognitivo. Há um total de cinco pontos possíveis no teste, sendo três pontos possíveis para a etapa “Lembrar de três palavras” e dois pontos para um relógio normal. Uma pontuação total de três ou mais indica uma probabilidade menor de comprometimento cognitivo. Direitos autorais do Mini-Cog®, Dr. Soo Borson (usado com permissão). Acesse mini-cog.com para obter mais detalhes.

As estratégias atuais de prevenção do delírio pós-operatório incluem o uso mínimo de medicamentos de alto risco, como benzodiazepínicos, anticolinérgicos, corticosteroides de doses mais altas, meperidina e polifarmacêuticos em geral. As publicações atuais defendem medidas de tratamento não farmacológico como o primeiro passo, mas exigem a restrição de medicamentos antipsicóticos a menos que o paciente apresente risco de autoflagelação ou danos aos outros.

A anestesiologia alcançou vários objetivos de segurança usando fatores humanos e de engenharia na criação de instrumentação e monitorização. Com isso em mente, continuamos procurando soluções tecnológicas para reduzir o delírio pós-operatório. Nossa especialidade desenvolveu a monitorização especializada do fluxo sanguíneo cerebral e a monitorização com base em EEG para tentar reduzir a profundidade da anestesia geral. Com os dados precoces sugerindo que a profundidade anestésica excessiva pode predispor o paciente ao delírio pós-operatório,9 os achados do ensaio ENGAGES10 não respaldam essa hipótese e vão de encontro às diretrizes recentes.7

As lacunas das nossas pesquisas: o papel da APSF

O cérebro é o órgão final visado pela anestesia geral. A recuperação neurocognitiva após a cirurgia nem sempre é um processo simples ou bem compreendido. Apesar disso, a demanda por cirurgias continuará, e nosso envolvimento com as práticas perioperatórias recomendadas para a saúde neurocognitiva é crucial. Dessa forma, é preciso assumir a liderança para otimizar a saúde cerebral dos pacientes submetidos a cirurgias.

Felizmente, nossa área está bem posicionada científica e clinicamente para abordar as lacunas do conhecimento da saúde cerebral. Conseguimos monitorar os sinais neuroinflamatórios do delírio nos participantes humanos usando modelos científicos básicos.11 As abordagens da neurociência de rede permitem o estudo das transições do estado cerebral em relação aos níveis e conteúdos de consciência. Passando para o ambiente clínico, as análises preliminares identificaram os sinais neurofisiológicos associados ao delírio.12 Portanto, as oportunidades de progresso da neurociência em relação aos estados cerebrais patológicos no espectro clínico, que também podem contribuir para o entendimento fundamental da disfunção cognitiva, ampliam o valor para além do ambiente perioperatório. Por fim, conforme a neurociência perioperatória se consolida, é hora de derrubar as barreiras da implantação das intervenções que pretendem otimizar a saúde cerebral perioperatória.13

O que fazemos hoje? O papel da ciência de implantação e melhoria da qualidade

Recentemente, Christian Guay, MD, e Michael Avidan, MD, afirmaram que a saúde cerebral e o delírio pós-operatório não devem ser considerados uma única síndrome nem tratados dessa forma.14 Em vez disso, eles são uma coleção de distúrbios distintos que compartilham algumas características em comum. As intervenções mais convincentes e passíveis de reprodução são direcionadas a vários fatores de risco modificáveis. Essas intervenções, similares ao Hospital Elder Life Program (Programa para idosos hospitalizados), reduzem o declínio cognitivo e funcional em idosos hospitalizados por meio da disponibilização de orientação cognitiva, auxílio social, protocolos de sono, mobilização e instrução da equipe de atendimento (Tabela 1). Até que as pesquisas científicas imponham intervenções mais precisas, é necessário aplicar os métodos tradicionais de melhoria da qualidade, ciência de implantação e controle da qualidade da ciência de engenharia e inserir a prevenção dos fatores de risco modificáveis em nossos fluxos de trabalho clínicos.

Tabela 1: Intervenções propostas para reduzir o declínio cognitivo e funcional

Intervenção Descrição
Intervenção principal
Visita e orientação diárias Quadro de orientação com os nomes dos membros da equipe de atendimento e a programação
Atividades terapêuticas Estímulo cognitivo três vezes por dia
Mobilização precoce Deambulação ou exercícios ativos de amplitude de movimento três vezes por dia
Protocolo de visão Auxílios visuais e equipamento adaptativo
Protocolo de audição Dispositivos de amplificação portáteis e técnicas de comunicação especiais
Repleção de volume oral Assistência e incentivo à alimentação e ao consumo de líquidos
Melhora do sono Protocolos de sono não farmacológicos
Intervenções do programa
Avaliação da enfermagem geriátrica Avaliação da enfermagem e intervenção no comprometimento cognitivo e funcional
Reuniões interdisciplinares Reuniões duas vezes por semana para discutir as condições dos pacientes e definir objetivos
Conhecimento do profissional de saúde Sessões didáticas formais, interações individuais
Vínculos com a comunidade Indicações e comunicação com as agências da comunidade para otimizar a transição para o lar
Consulta com um geriatra Consulta direcionada indicada pela equipe do programa
Consulta interdisciplinar Consulta mediante indicação pela equipe (conforme a necessidade)

Adaptado com permissão de Inouye SK, Bogardus Jr ST, Baker, DI, et al. The Hospital Elder Life Program: a model of care to prevent cognitive and functional decline in older hospitalized patients. J Am Geriatr Soc. 2000;48:1697-1706.

Primeiro, os médicos perioperatórios na linha de frente devem se comprometer com a avaliação da função cognitiva antes da cirurgia. Ferramentas cognitivas simples, como o teste Mini-Cog (Figura 2), podem ser aplicadas no atendimento primário, na anestesiologia e nas clínicas de geriatria antes de cirurgias eletivas. Essas ferramentas não só fornecem dados de processo para estabelecer uma avaliação de referência para o paciente individual, como também podem servir como dados da população para estudos longitudinais. Em sua discussão na palestra Perioperative Brain Health (Saúde cerebral perioperatória) para a APSF em 2018, Deborah Culley, MD, demonstrou ao público como o Mini-Cog pode ser usado rapidamente sem alterações no fluxo de trabalho clínico.

Em segundo lugar, embora falte precisão nas ferramentas de avaliação existentes para casos de delírio pós-operatório, devemos implementar a avaliação do delírio na prática regular dos médicos na linha de frente, principalmente para os pacientes geriátricos e outros com maior risco de desenvolver delírio pós-operatório. A instrução recorrente e programada deve ser o padrão para manter a familiaridade dos médicos com essas ferramentas e evitar o não cumprimento do protocolo. Ao codificar a pesquisa e o diagnóstico, podemos substituir as ferramentas de primeira geração por ferramentas de avaliação clínica mais confiáveis.

Em terceiro lugar, no âmbito perioperatório, podemos influenciar as alterações dos fatores humanos, como simplificação da medicação, identificação de comprometimentos da visão e audição no início do processo pós-operatório e minimização da sedação. Nenhuma dessas mudanças propostas envolve gastos consideráveis nem a reformulação complexa da prática, e essas intervenções podem ser incorporadas ao nosso trabalho diário para conquistar os objetivos de segurança dos pacientes idosos.

Concluindo, em vez de nos concentrarmos em resultados muito específicos relacionados às pesquisas, as intervenções do delírio pós-operatório devem aplicar as medidas da ciência de implantação. Podemos aproveitar as ferramentas de melhora do desempenho, como gráficos de controle e avaliações do processo para ponderar a mudança de diagnóstico, monitorização e terapia em vez de dependermos das avaliações dos resultados até que um biomarcador de diagnóstico confiável e válido para o delírio pós-operatório ou uma terapia mais específica sejam desenvolvidos.

Conclusão

Há 35 anos, a APSF estruturou sua missão de que “nenhum paciente deve ser prejudicado pela anestesia”. Ao longo do tempo, grandes avanços na prevenção do colapso cardiovascular, hipoxemia, erro de medicamento e erro humano foram realizados pela organização e criaram melhorias revolucionárias na segurança da anestesia. Atualmente, esses esforços são empregados na nova meta de saúde cerebral para evitar o delírio pós-operatório e permitir que os pacientes retornem à sua função cognitiva normal ou melhor. Na era da revolução da neurociência, a APSF tem a tarefa arriscada de abordar o problema de saúde pública do delírio pós-operatório. Os custos são altos, a ciência da fisiopatologia, prevenção e tratamento tem muito para melhorar, e os fluxos de trabalho precisam ser padronizados. Estamos ansiosos para que nossa especialidade auxilie na descoberta do novo conhecimento que será a base da ciência da implantação para codificar nossas ações e atingir essa nova meta.

 

Nirav Kamdar é professor clínico assistente no Departamento de Anestesiologia e Medicina Perioperatória na UCLA Health, Los Angeles, Califórnia.

Phillip Vlisides é professor assistente no Departamento de Anestesia e no Center for Consciousness Science na University of Michigan Medical School, Anne Arbor, Michigan.

Dan Cole é professor de Anestesiologia Clínica no Departamento de Anestesiologia e Medicina Perioperatória na UCLA Health, Los Angeles, Califórnia.


As autoras não apresentam conflitos de interesse.


Referências

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  2. Gaba DM. Anaesthesiology as a model for patient safety in health care. BMJ. 2000;320:785–8.
  3. Cooper JB, Gaba D. No myth: anesthesia is a model for addressing patient safety. Anesthesiology. 2002;97:1335–7.
  4. Leslie DL, Marcantonio ER, Zhang Y, et al. One-year health care costs associated with delirium in the elderly population. Arch Intern Med. 2008;168:27–32
  5. Mahanna-Gabrielli E, Schenning KJ, Eriksson LI, et al. State of the clinical science of perioperative brain health: report from the American Society of Anesthesiologists Brain Health Initiative Summit 2018. Br J Anaesth. 2019;123:464–78.
  6. Vlisides P, Avidan M. Recent advances in preventing and managing postoperative delirium. F1000Res. 2019;8.
  7. Postoperative delirium in older adults: best practice statement from the American Geriatrics Society – ScienceDirect at https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1072751514017931?via%3Dihub Last Accessed August 7, 2020.
  8. Greer N, Rossom R, Anderson P. Delirium: Screening, Prevention, and Diagnosis—A Systematic Review of the Evidence. VA-ESP Project #09-009 2011:95.
  9. Chan MTV, Cheng BCP, Lee TMC, et al. BIS-guided anesthesia decreases postoperative delirium and cognitive decline. J Neurosurg Anesthesiol. 2013;25:33–42.
  10. Wildes TS, Mickle AM, Ben Abdallah A, et al. Effect of electroencephalography-guided anesthetic administration on postoperative delirium among older adults undergoing major surgery. JAMA. 2019;321:473–83.
  11. Vasunilashorn SM, Ngo LH, Chan NY, et al. Development of a dynamic multi-protein signature of postoperative delirium. J Gerontol A Biol Sci Med Sci. 2019;74:261–268.
  12. Tanabe S, Mohanty R, Lindroth H, et al. Cohort study into the neural correlates of postoperative delirium: the role of connectivity and slow-wave activity. Br J Anaesth. 2020;125:55–66.
  13. Balas MC, Burke WJ, Gannon D, et al. Implementing the ABCDE Bundle into everyday care: opportunities, challenges and lessons learned for implementing the ICU Pain, Agitation and Delirium (PAD) guidelines. Crit Care Med. 2013;41:S116–27.
  14. Guay CS, Avidan MS. No brain Is an island. Anesth Analg. 2020;130:1568–1571.