Relações Saudáveis entre Anestesiologistas e Cirurgiões são Vitais para a Segurança do Paciente

Jeffrey B. Cooper, PhD

Anestesiologistas e cirurgiõesO trabalho em equipe eficaz em equipes perioperatórias é um pré-requisito para a segurança do paciente. No entanto, o que raramente é discutido é a grande importância das díades nas equipes, ou seja, o relacionamento entre dois profissionais. Se você é anestesiologista, provavelmente está ciente, pelo menos de forma subliminar, da redução na segurança do paciente quando se trabalha com um colega da área cirúrgica com quem seu relacionamento não é bom. Na melhor das hipóteses, o relacionamento disfuncional pode contribuir para uma experiência desagradável no dia a dia de trabalho, e, na pior das hipóteses, pode ser um elemento crítico que permite ou causa um resultado adverso. Por outro lado, quando se trabalha com um colega de confiança e que você respeita, e o sentimento é mútuo, é muito mais provável que o dia de trabalho seja agradável e o paciente tenha um resultado ideal1.* Abordei esse tópico em um comentário publicado simultaneamente no Anesthesiology e no The Journal of the American College of Surgeons (uma situação incomum) e, mais recentemente, em minha apresentação para a palestra anual em memória de Ellison C. Pierce, Jr., MD, organizada pela APSF e pela ASA2,3. Resumo aqui as principais observações e sugestões de ação.

Na apresentação e no artigo, concentro-me na díade anestesiologista -cirurgião em uma mesma equipe. Noto que as outras díades também são de grande importância para a segurança do paciente, por exemplo, entre o cirurgião e a enfermeira da sala cirúrgica e entre o cirurgião e qualquer anestesiologista. No entanto, meu instinto me diz que existem aspectos da díade de médicos na mesma equipe que criam o potencial de uma disfunção especialmente problemática; esse é o meu foco atual (talvez eu chegue aos outros em breve). Por que escolhi me concentrar nesse tópico? Ao longo dos anos (mais de 47 desde que comecei a trabalhar na área da saúde), em vários locais, ouvi muitas histórias sobre eventos adversos causados por relacionamentos disfuncionais ou que poderiam ter sido evitados por um relacionamento positivo. Sobretudo, ouvi muitas observações desrespeitosas representativas dos estereótipos que os anestesiologistas têm a respeito dos cirurgiões. Não tenho tanta oportunidade de ouvir comentários semelhantes de cirurgiões, mas, quando sondei, observei estereótipos semelhantes lá também. Embora estereótipos e comentários desrespeitosos possam não ser prejudiciais para os pacientes, as atitudes que eles representam podem levar a falhas na comunicação e falta de colaboração e coleguismo, o que pode causar, permitir ou não prevenir um evento adverso.

Alguns dos estereótipos negativos específicos estão listados na Tabela 1. Esses estereótipos vêm de anos de escuta, bem como da minha busca por comentários de colegas cirurgiões e anestesiologistas, próximos e distantes, com prática particular e experiências acadêmicas. Repito que não tenho dados que forneçam evidências concretas, mas ninguém a quem apresentei essa reflexão contestou qualquer um dos comentários nem rechaçou minha afirmação de que é uma situação comum e pouco saudável.

Tabela 1: Estereótipos negativos

Exemplos de estereótipos de anestesiologistas sobre cirurgiões:
  • Nunca admitem quanto sangue perderam.
  • Só pensam em ganhar mais dinheiro com mais casos.
  • Não sabem nada sobre problemas médicos.
  • Sempre subestimam o tempo de duração da cirurgia.
Exemplos de estereótipos de cirurgiões sobre anestesiologistas:
  • Só querem ir para casa mais cedo, não se importam com o meu paciente.
  • Estão sempre prontos para cancelar uma cirurgia por qualquer motivo.
  • Costumam se distrair facilmente, não prestam atenção.
  • Nunca nos falam quais pressores estão usando.

Considerando a importância de cirurgiões e anestesiologistas trabalharem em colaboração, é surpreendente que existam poucas pesquisas sobre esse tópico e quase nenhuma especificamente sobre a díade anestesiologista-cirurgião. Lorelei Lingard et al. examinaram, em vários estudos, situações em que o discurso dentro da equipe perioperatória gira em torno de conflitos4. Um comentário decorrente desses estudos é que “as construções dos sujeitos sobre os papéis, valores e motivações de outras profissões eram muitas vezes dissonantes com as construções dessas profissões a respeito de si mesmas”. Relacionada a esse comentário, está a observação de que “os integrantes da equipe usam suposições sobre a motivação do interlocutor para interpretar as trocas comunicativas”.

Jonathan Katz abordou especificamente conflitos na sala cirúrgica5. Ele observa que “cancelamento… para avaliação adicional… está entre as causas mais frequentes de conflito entre cirurgião e anestesiologista”. Ele também observa que as fontes de conflito apresentam uma oportunidade para colaboração. Deve-se ter como meta a transformação de todas essas oportunidades em uma colaboração produtiva visando o interesse do paciente, buscando compreender o que é certo, não quem está certo.

Diana McLain Smith escreve sobre como as díades funcionais e disfuncionais nas equipes de liderança são críticas para o sucesso ou o fracasso nas organizações6. As características e os resultados que ela descreve são claramente aplicáveis aos cuidados perioperatórios e à equipe de liderança na sala de cirurgia. Esse construto se diferencia da discussão usual sobre relacionamentos em equipes porque o foco está no relacionamento entre duas pessoas, e não na equipe como um todo.

Ambos são importantes. O que estou sugerindo é que o relacionamento entre pessoas é igualmente, se não mais importante para entender e melhorar.

Quais são as maneiras específicas pelas quais as interações nessa díade afetam a segurança do paciente para melhor ou para pior? Ouvi muitas histórias em meus quase 35 anos de experiência como integrante de um comitê de revisão de garantia de qualidade e através de muitas histórias que me contaram enquanto eu investigava esse tópico. Considere um anestesiologista, que mesmo sendo mais jovem, pode ser mais experiente em fisiologia que o cirurgião e que tentou informar o cirurgião de que seu diagnóstico não estava de acordo com os dados. Como o anestesiologista não tinha estabelecido uma relação de confiança com o cirurgião, o cirurgião desconsiderou as sugestões. Como o anestesiologista estava certo, o resultado do paciente foi muito pior do que poderia ter sido se o cirurgião tivesse colaborado com ele. Ou o anestesiologista que, apesar da extensa experiência do cirurgião na realização de cricotirotomia, desconsiderou a sugestão do cirurgião de que era hora de avançar o algoritmo das vias aéreas difíceis, e a situação se deteriorou perigosamente. São histórias verdadeiras que provavelmente soam familiares para você.

Existe o outro lado. Ouvi, separadamente, de um anestesiologista e de um cirurgião a respeito de uma situação em que o relacionamento já estabelecido de confiança foi claramente um fator para o sucesso. Uma agulha com sutura destacável se separou prematuramente. O cirurgião, incapaz de localizar a agulha, fixou-se profundamente na ferida operatória, procurando encontrá-la. O anestesiologista, observando a dificuldade, esperou um momento apropriado para sugerir um breve reagrupamento e consideração das opções. Isso levou ao uso de fluoroscopia para encontrar a agulha. Também ouvi falar de situações em que um cirurgião alertou seu ou sua colega anestesiologista no dia anterior à cirurgia ou com mais antecedência sobre um problema do paciente com implicações relacionadas à anestesia que evitou um problema de segurança do paciente. Suspeito que a maioria dos anestesiologistas que estão lendo isto teve experiências semelhantes. De fato, alguns têm a sorte de ter experiências positivas regulares, em vez de negativas. Todos os pacientes deveriam ter essa mesma sorte.

Se o que estou descrevendo faz sentido para você, o que pode ser feito para tornar essa díade mais eficaz? Não tenho conhecimento de evidências empíricas para orientar sugestões, mas existem alguns princípios gerais sobre desenvolvimento de relacionamentos que podem ser aplicados. Sugeri no artigo algumas atitudes que são práticas, mas dar o primeiro passo não é fácil. Na maioria dos relacionamentos que precisam de aprimoramento, cada parte precisa aderir à mudança. Talvez você pense: “não é só minha culpa, são os cirurgiões que precisam melhorar a atitude”. Não estou julgando quem tem mais culpa quando as coisas não estão indo bem. Porém, posso dizer com certeza que nada vai melhorar se pelo menos uma pessoa não tentar iniciar um diálogo construtivo.

Aqui estão algumas sugestões, qualquer uma das quais você pode considerar tentar. (Eu não inventei tudo isso. Muitos dos seus colegas já realizam algumas dessas atitudes. Você pode pensar em algo também.)

  1. Convide um cirurgião para almoçar ou jantar. Isso é especialmente produtivo quando um novo cirurgião começa a trabalhar no seu hospital.
  2. Crie um grupo focal para discutir um dos artigos das referências. Ouça mais do que fala. Procure entender como os comportamentos que você observa podem vir de fontes diferentes do que você imagina.*
  3. Trabalhem juntos em questões comuns, por exemplo, para diminuir o risco de infecção cirúrgica, com o qual os anestesiologistas podem contribuir. Implantem manuais de emergência juntos.
  4. Pressuponha as melhores intenções, como na “suposição básica”7 agora amplamente ensinada em simulação e modificada para esta aplicação como: “meus colegas cirurgiões são inteligentes, agem no melhor interesse de seus pacientes e estão tentando melhorar”. Esse nem sempre é o caso, mas majoritariamente é.
  5. Quando a atitude de alguém faz você pensar “Que droga é essa?”8, em vez de atribuir um estereótipo negativo, seja curioso, procure descobrir a lógica por trás da ação. É provável que você aprenda algo novo. Mesmo que a ação da pessoa não seja a ideal ou correta, geralmente é por um bom motivo. Se não houver um bom motivo, será mais fácil ajudar a pessoa a ver a situação de modo diferente do que apenas supor que ela é irracional.
  6. Faça simulações com a equipe toda. É uma forma comprovada de melhorar as habilidades de gerenciamento de crise da equipe. Além disso, coloca você em posição de dialogar no mesmo nível que os colegas. Mais programas de simulação estão fazendo isso. Você pode até assumir a liderança e sugerir isso para a equipe. Claro, isso demanda dinheiro e muito trabalho (simplesmente juntar as pessoas já é difícil), mas vale a pena.
  7. Leia um livro sobre comunicação em relacionamentos, por exemplo, “Difficult Conversations,”9 ou “Thanks for the Feedback”10. Relacionamentos são difíceis. Há muito o que aprender. Felizmente, existem muitos bons modelos com os quais aprender.

Não prometo que vá ser fácil. Mas acho que vale a pena dedicar o tempo e esforço necessários, pela segurança de seus pacientes. Não fazer nada significa que nada vai mudar. Se seus esforços forem bem-sucedidos, você terá feito um grande avanço pela segurança do paciente e provavelmente encontrará mais alegria e significado em sua vida profissional diária.

*Se você deseja organizar um grupo focal ou uma apresentação, posso enviar um link para as animações que usei durante a palestra, incluindo uma versão abreviada de “There is a Fracture”. (Você encontra o original no YouTube.) As outras duas animações são sobre a visão que os cirurgiões têm dos anestesiologistas e de como seria uma colaboração saudável.” (Sem custo, Você só precisa prometer usá-las para o bem.)

 

Dr. Cooper é professor de Anestesia, na Harvard Medical School e do Departamento de Anestesia, Medicina Intensiva e Medicina da Dor, no Massachusetts General Hospital. É um dos fundadores da APSF, tendo se aposentado do Conselho de Diretores e do Comitê Executivo em 2018, após 32 anos de atuação. Este artigo é um resumo de parte de sua palestra para a Conferência em Memória de Ellison C. Pierce, Jr., MD, na Conferência Anual da American Society of Anesthesiologists, em 19 de outubro de 2019.


Dr. Cooper não apresenta conflitos de interesse.


Referências

  1. Katz D, Blasius K, Isaak R, et al. Exposure to incivility hinders clinical performance in a simulated operative crisis. BMJ Qual Saf. 2019;28:750–757.
  2. Cooper JB. The critical role of the anesthesiologist-surgeon relationship for patient safety. Anesthesiology. 2018; 129:402–405. (Pub ahead of print) (co-publication in J Amer Coll Surg. 2018;227:382–86) http://anesthesiology.pubs.asahq.org/article.aspx?articleid=2695026
  3. Cooper JB. Respectful, trusting relationships are essential for patient safety, especially the surgeon-anesthesiologist dyad. Ellison C. Pierce, Jr. Memorial Lecture. Annual Meeting of the American Society of Anesthesiologists, October 19, 2019. Accessed November 11, 2019. https://dev2.apsf.org/news-updates/watch-jeffrey-b-cooper-ph-d-give-the-anesthesiology-2019-asa-apsf-ellison-c-pierce-memorial-lecture/
  4. Lingard L, Reznick R, DeVito I, et al. Forming professional identities on the health care team: discursive constructions of the “other” in the operating room. Med Educ. 2002;36:728–734.
  5. Katz JD. Conflict and its resolution in the OR. J Clin Anes. 2007;19:152–158.
  6. McLain Smith D. The elephant in the room. San Francisco: Jossey-Bass; 2011.
  7. Rudolph J. What’s up with the basic assumption. https://harvardmedsim.org/search-results/?swpquery=basic+assumption Accessed November 11, 2019.
  8. Rudolph J. Helping without harming. SMACC, Berlin, June 26, 2017. https://www.youtube.com/watch?v=eS2aC_yyORM Accessed October 29, 2019.
  9. Stone D, Patton B, Heen S. Difficult conversations: how to discuss what matters most. Penguin Books, Ltd., London, 1999.
  10. Stone D, Heen S. Thanks for the feedback. Penguin Books, New York, 2014.