SENSAR: implantando a cultura de Sistemas de Relatórios de Eventos Críticos

Alejandro Garrido Sánchez, MD; Rodrigo Molina Mendoza, MD; Eva Romero García, MD; Daniel Arnal Velasco, MD
Summary: 

Em 2009, o SENSAR lançou seu primeiro Sistema de Relatórios de Eventos Críticos multicentro na Espanha. Dez anos depois, ele conta com 107 hospitais com participação ativa na Espanha e no Chile, com mais de 500 analisadores locais, em mais de 9.000 eventos relatados, resultando em mais de 17.000 medidas de melhorias implementadas. Este artigo descreve o impacto do SENSAR na melhoria da cultura de segurança e na segurança do paciente, ilustrando os benefícios do uso de uma estratégia multimodal dentro das organizações de saúde.

INTRODUÇÃO

Um Sistema de Relatórios de Eventos Críticos (CIRS, na sigla em inglês) registra eventos ou circunstâncias que podem resultar em dano desnecessário aos pacientes. É uma ferramenta bastante útil para a melhora na segurança do paciente, pois evita danos desnecessários ao realizar uma análise sistemática dos fatores latentes que contribuem para eventos adversos. Várias organizações, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Agency for Healthcare Research and Quality recomendam o uso de CIRS. O uso é fundamentado nos princípios modernos de uma cultura de segurança não punitiva, aberta e justa e exige a dedicação de indivíduos e organizações para potencialmente reduzir danos aos pacientes na prática de anestesia. Demonstrou-se que os CIRSs nacionais foram essenciais no aumento da cultura de segurança.1 Os CIRSs mais úteis são os voluntários, anônimos, com foco no aprendizado e que utilizam um escopo nacional. Esses recursos facilitam a criação de soluções locais para problemas comuns por meio da adoção e tomada de medidas de melhoria projetadas para prevenir a reincidência de eventos críticos.2,3 A ausência de alcance potencial de CIRSs existentes na redução de danos aos pacientes conforme esperado pela OMS4 foi atribuída a algumas limitações e barreiras conhecidas, como falta de feedback para os profissionais que relatam os eventos, desafios nas taxas de medição de eventos adversos, custos associados à implantação, ausência de apoio institucional e econômico, implantação insatisfatória e desafios na análise de grandes volumes de informações fornecidas pelos sistemas. Apesar de várias iniciativas terem sido lançadas para aumentar o uso de CIRSs,5 seu potencial para promover a segurança do paciente ainda não foi totalmente concretizado.

Figura 1: Estratégia multimodal do SENSAR desenvolvida em 2013 (5 anos após a fundação).

Figura 1: Estratégia multimodal do SENSAR desenvolvida em 2013 (5 anos após a fundação).

O Sistema de Notificações de Segurança em Anestesia e Recuperação Espanhol (SENSAR, na sigla em espanhol) é um CIRS criado em 2009, com a participação de 16 hospitais em toda a Espanha. Ele começou com um único centro implantado em 1999 no Hospital Universitario Fundación Alcorcón. Cinco anos depois, o CIRS foi aprimorado com uma estratégia multimodal para melhor desempenho no relato de eventos críticos, na análise e na execução de medidas de melhoria derivadas (Figura 1). Depois de 10 anos de experiência, o SENSAR foi ampliado e agora abrange 107 hospitais (100 na Espanha e 7 no Chile), o que equivale a mais de 500 analisadores, que examinaram 9.274 relatórios de eventos críticos e implantaram 17.056 medidas de melhoria (Tabela 1). Com o tempo, o que começou como um CIRS de apenas um centro se transformou em uma organização que serve de modelo de melhoria na segurança perioperatória do paciente na Espanha, na Europa e na América Latina.

Tabela 1: Número de hospitais, analisadores, eventos críticos e medidas de melhoria nos 10 anos de experiência do SENSAR.

Hospitais Analisadores Eventos críticos Medidas de melhoria
2009 37 183 575 1.024
2010 53 246 1.438 2.570
2011 63 288 2.184 3.914
2012 69 304 2.785 5.190
2013 75 335 3.568 6.470
2014 77 351 4.714 8.662
2015 78 356 5.993 1.0930
2016 90 425 7.170 13.256
2017 101 484 8.352 15.596
2018 107 518 9.392 17.722

UMA VISÃO GERAL DO NOSSO CIRS

O CIRS do SENSAR é uma ferramenta de aprendizagem não punitiva, anônima e confidencial que fornece agilidade no gerenciamento da informação recebida, proporcionando feedback imediato na forma de medidas de melhoria úteis. Ele também promove o compartilhamento de dados no âmbito nacional, pois é gerenciado por grupos especializados em segurança do paciente que compartilham seus dados e projetos educacionais por meio de comunidades e redes profissionais.

A segurança do paciente é um parâmetro essencial de qualidade do atendimento e do gerenciamento de riscos. Nos últimos anos, direcionamos nossos esforços para o desenvolvimento e a medição da cultura de segurança em todas as nossas organizações, o que nos permite ter um raio de ação mais amplo, fazendo com que as medidas de melhoria implantadas tenham maior impacto. Essa mudança cultural envolve um processo de aprendizado coletivo que se concentra no sistema, não no indivíduo. É baseada no entendimento das causas de eventos críticos a fim de adotar medidas para preveni-los. O modelo de erro humano proposto por Reason, que é amplamente aceito, é utilizado como base para o sistema.6 Este modelo reconhece que os seres humanos não são perfeitos e, portanto, erros cometidos por indivíduos são esperados. No entanto, os erros humanos devem ser vistos como consequências e não causas, já que se originam de fatores dentro do sistema de saúde. Assim, os indivíduos não somente devem evitar cometer erros, mas os sistemas de saúde também devem apresentar medidas de proteção para preveni-los. Ao utilizar essa abordagem, cada evento crítico é uma oportunidade de aprendizado para identificar e corrigir os fatores contribuintes, e não uma situação para culpar o indivíduo envolvido no erro. Estes quatro elementos culturais são importantes para alcançar uma cultura de segurança do paciente: 1) Comunicação, na qual os profissionais da saúde sentem uma atmosfera não punitiva, que encoraja o relato de eventos críticos e permite falar abertamente sobre eles com outras pessoas; 2) Justiça, na qual os comportamentos inaceitáveis e perigosos são diferenciados de maneira clara de comportamentos que, embora errôneos, são compreensíveis ou explicáveis; 3) Flexibilidade, que permite mudanças na estrutura hierárquica para adaptar-se a situações de risco; e 4) Aprendizado, com o desejo de obter informações da análise de eventos críticos e empenho para implantar as modificações necessárias.7

NOSSA ABORDAGEM

A abordagem do SENSAR foca a análise de eventos críticos usando um modelo para identificar fatores latentes associados, dentre os quais consideramos: 1) o indivíduo (anestesiologista ou outro profissional da saúde) em contato direto com o paciente; 2) a equipe de profissionais envolvida nos eventos críticos, bem como a comunicação entre eles; 3) a(s) tarefa(s) sendo realizada(s); 4) o paciente e sua condição clínica; 5) o local de trabalho; e 6) a organização. O SENSAR facilita o aprendizado a partir dos erros de modo sistemático, e, portanto, ajuda a promover a segurança no ambiente de saúde ao fornecer um veículo para a análise de eventos sem causar danos ao paciente. Acreditamos que o estudo e controle dos fatores latentes não é apenas essencial na melhora do desempenho, mas também é a forma mais eficaz de evitar a reincidência de eventos críticos.

O relato de eventos críticos nos 107 hospitais participantes do SENSAR ocorre de modo colaborativo e por meio eletrônico com o código de acesso genérico, que é exclusivo para cada centro (Figura 2). O sistema usa uma plataforma on-line, chamada PITELO (sigla para os fatores latentes mais comuns: Paciente –Indivíduo–Tarefa–Equipe–Local–Organização), que pode ser acessada pelo site www.sensar.org. O formulário de comunicação é estruturado de modo a facilitar a inserção de dados e evitar a perda de informações relevantes. (Entre 2009 e abril de 2017 o CIRS do SENSAR foi chamado de ANESTIC.)

Figura 2: Login do SENSAR no PITELO, a plataforma de análise e comunicação on-line.

Figura 2: Login do SENSAR no PITELO, a plataforma de análise e comunicação on-line.

Os eventos críticos de cada hospital relatados no banco de dados do SENSAR estão disponíveis para o grupo de análise local. Este grupo de análise é composto por no mínimo três e no máximo seis anestesiologistas e geralmente inclui o diretor ou coordenador da equipe, como uma forma de facilitar e acelerar a implantação de medidas de melhoria, se necessário. Cada membro do grupo de análise assume a responsabilidade pelos eventos críticos relatados durante um período designado (semanalmente ou mensalmente dependendo do volume de comunicações) e atua como o representante do grupo. A função do representante é analisar detalhadamente cada evento no tempo atribuído, apagar todas as informações de identificação que comprometeriam o anonimato (nomes, datas, código do histórico médico etc.) e verificar se há eventos críticos semelhantes no banco de dados do hospital (bem como em bancos de dados de outros hospitais participantes do SENSAR, se disponível). A análise feita é focada no sistema para determinar os fatores latentes que contribuem para a ocorrência do evento crítico e resulta na proposta de medidas corretivas que abordam cada um dos fatores latentes identificados.

NOSSOS RESULTADOS DEPOIS DE DEZ ANOS

O SENSAR passou de seus 16 membros originais para uma rede composta por 100 hospitais na Espanha e 7 no Chile. Seu banco de dados tem mais de 9.000 eventos e quase o dobro de propostas de medidas de melhorias para a prevenção de eventos adversos futuros. Apesar do sucesso, esforços ainda maiores são necessários para manter a implantação atual e permitir maior crescimento. Um dos maiores desafios atuais é estimular os profissionais da saúde a relatar eventos críticos.

Em relação à natureza dos eventos críticos relatados no banco de dados do SENSAR, os erros clínicos foram os eventos mais comuns (25%), seguidos por erros de medicação (21%) e falhas em equipamentos (20%). Felizmente, menos de 5% dos eventos relatados no nosso banco de dados representavam perigo de morte ao paciente. E o mais importante, o SENSAR permite o aprendizado e desenvolvimento de medidas de melhoria úteis para eventos que representam risco baixo, médio ou alto aos pacientes. As medidas obtidas com nossa análise variam em complexidade. A maioria das medidas de melhoria em nosso banco de dados tende a ser educacional ou informativa, isto é, alertas, comunicados, sessões clínicas ou debriefings, para os profissionais na equipe, desenvolvidas para ajudá-los a evitar fatores que levam ao evento crítico. Como resultado da análise, 1.568 protocolos clínicos já foram criados ou modificados nos 107 hospitais participantes. Para tornar nosso sistema sustentável como parte de nossa estratégia multimodal de “difundir o conhecimento”, implantamos os cursos de segurança do paciente focados no CIRS em escala local, nacional e internacional (Chile) e promovemos o treinamento de mais 450 profissionais na Espanha e mais de 180 no Chile.

Acreditamos que os anestesiologistas estão evoluindo em direção a práticas mais seguras ao seguir este sistema. O impacto da estratégia multimodal desenvolvida e utilizada pelo SENSAR resultou em um avanço significativo na área de segurança do paciente em anestesia e áreas correlatas, melhorando a cultura de segurança de profissionais e instituições. O SENSAR pode servir como um modelo para melhorar a segurança do paciente de modo global.

 

O Dr. Alejandro Garrido Sánchez é Anestesiologista no Hospital General Universitario Gregorio Marañón e Vice-Presidente do SENSAR, Madrid, Espanha.

O Dr. Rodrigo Molina Mendoza é Anestesiologista no Hospital Universitario Fundación Alcorcón e Tesoureiro do SENSAR, Madrid, Espanha.

A Dra. Eva Romero García é Anestesiologista no Hospital Universitario y Politécnico La Fe e Presidente do SENSAR, Valência, Espanha.

O Dr. Daniel Arnal Velasco é Anestesiologista no Hospital Universitario Fundación Alcorcón e Presidente do Comitê de Qualidade e Segurança do Paciente da ESA (European Society of Anesthesia), Madrid, Espanha.


Os autores não têm conflitos a declarar no que diz respeito a este artigo. O SENSAR é uma organização sem fins lucrativos e para o benefício público.


NOTA: As tabelas e figuras foram elaboradas pelo SENSAR.

REFERÊNCIAS

  1. Hutchinson A, Young TA, Cooper KL, et al. Trends in health care incident reporting and relationship to safety and quality data in acute hospitals: results from the National Reporting and Learning System. BMJ Publishing Group Ltd. Quality and Safety in Health Care. 2009;18:5–10.
  2. Reed S, Arnal D, Frank O, et al. National critical incident reporting systems relevant to anaesthesia: a European survey. Br J Anaesth. 2014;112:546–55.
  3. Howell A-M, Burns EM, Hull L, et al. International recommendations for national patient safety incident reporting systems: an expert Delphi consensus-building process. BMJ Publishing Group Ltd. BMJ Qual Saf. 2017;26:150–63.
  4. Mitchell I, Schuster A, Smith K, et al. Patient safety incident reporting: a qualitative study of thoughts and perceptions of experts 15 years after “To Err is Human.” BMJ Qual Saf. 2016;25:92–9.
  5. Parmelli E, Flodgren G, Fraser SG, et al. Interventions to increase clinical incident reporting in health care. Cochrane Database Syst Rev. 2012;(8):CD005609.
  6. Reason J. Human error: models and management. BMJ. 2000;320:768-70.
  7. Mahajan, RP. Safety culture in anesthesiology. Revista Española de Anestesiología y Reanimación. 2011;58 (Supl.3): S10-S14.