Segurança x Qualidade – Palestra memorial de segurança Ellison C. Pierce Jr., MD da APSF/ASA em 2020

Matthew B. Weinger, MD, MS
Para assistir a Palestra memorial de segurança Ellison C. Pierce Jr., MD na íntegra, visite: https://dev2.apsf.org/asa-apsf-ellison-c-pierce-jr-md-memorial-lecturers/

Este artigo resume o conteúdo da Palestra memorial de segurança Ellison C. Pierce Jr., MD apresentada em 3 de outubro de 2020 no congresso da American Society of Anesthesiologists (realizado virtualmente). A palestra destaca o conflito entre qualidade e segurança e é um apelo para que os profissionais de anestesia reconheçam seu importante papel na melhoria da segurança dos cuidados de saúde. Minha apresentação primeiro analisa o papel emergente do profissional de anestesia no ambiente de segurança de saúde de hoje. Em seguida, exploro uma consequência importante, embora pouco apreciada, dos ambientes de trabalho inseguros – o impacto dos sistemas disfuncionais nos médicos. A seguir, falo sobre o impulso para uma maior qualidade de saúde nos EUA, seguido por um resumo das abordagens conflitantes para os esforços de segurança e qualidade. Por fim, reviso os princípios da engenharia de fatores humanos e do design centrado no ser humano que podem contribuir para a solução desse dilema.

Segurança do paciente

Baseado na minha revisão de publicações, parece ser possível evitar cerca de metade dos óbitos perioperatórios. Embora a mortalidade primariamente relacionada à anestesia seja bastante baixa, a mortalidade cirúrgica é pelo menos 100 vezes maior. Assim, os anestesiologistas podem e devem desempenhar um papel maior na redução não apenas da morbimortalidade associada à anestesia, mas também à cirurgia. Para atingir essa meta, precisamos, por exemplo, assumir mais responsabilidade pela redução de infecções cirúrgicas por meio de antibióticos profiláticos corretos e no tempo certo, bem como uma melhor técnica estéril por profissionais de anestesia ao administrar medicamentos intravenosos, especialmente durante a indução.1 Manter a pressão arterial média eficaz durante todos os cuidados perioperatórios é outra maneira pela qual os profissionais de anestesia podem melhorar os resultados cirúrgicos.

Há mais de duas décadas, introduzi o conceito de “evento não rotineiro” (ou ENR) aplicado à área de saúde. Definimos um ENR como qualquer acontecimento indesejável, incomum ou surpreendente para um paciente particular em sua situação clínica específica. Meus colegas e eu demonstramos que os ENRs: 1) são comuns, variando de 20-40% em várias configurações perioperatórias; 2) são multifatoriais; 3) podem contribuir para e/ou estar associados a resultados adversos para o paciente e, o mais importante, 4) oferecem evidências para a melhora de processos e tecnologias defeituosos nos sistemas de atendimento.2

Um problema importante na visão atual da segurança do paciente (Segurança 1.0) na maioria das organizações de saúde é seu foco na detecção e análise de eventos adversos ou agregação de resultados insatisfatórios para conduzir à mitigação ou melhoria. Embora útil, a eficácia de tal abordagem é limitada devido ao viés retrospectivo e sua incapacidade de oferecer informações suficientes sobre a melhor forma de prevenir eventos adversos futuros. Portanto, em vez disso, na área de saúde como em outros setores, os profissionais de segurança do paciente precisam estudar como os médicos experientes são bem-sucedidos mesmo quando trabalham em processos e sistemas disfuncionais e, em seguida, projetar processos e tecnologia para apoiar e promover esses comportamentos resilientes (Segurança 2.0).

Segurança do médico

A deterioração do bem-estar médico e o burnout são mais prováveis ​​quando o hospital enfatiza indevidamente a produção, tem processos e tecnologia disfuncionais que predispõem ao cuidado inseguro ou tem uma cultura e líderes com entendimento e apoio inadequados às necessidades dos médicos na linha de frente. Estudos mostram que o burnout médico está associado a efeitos adversos não apenas para os médicos, mas para a segurança do paciente e o desempenho organizacional.3 Além disso, muitos fatores do sistema associados a um risco aumentado de burnout são os mesmos associados ao risco de ENRs e eventos adversos evitáveis.

Segurança x Qualidade

Os dados sugerem que os cuidados de saúde nos Estados Unidos, quando comparados com outros países desenvolvidos, são geralmente de qualidade inferior, frequentemente menos seguros e têm uma proporção maior de gastos totais em atividades que não beneficiam diretamente os pacientes (confira diversos artigos e números no site www.commonwealthfund.org). Assim, há uma pressão enorme para aumentar o valor nos cuidados de saúde, aqui definido como a qualidade da assistência prestada dividida pelo custo de prestação desse cuidado. Como o custo é o fator dominante na equação de valor, a eficácia e a eficiência do atendimento se tornaram um foco predominante nas iniciativas de qualidade da maioria das organizações.

A Tabela 1 mostra os contrastes entre uma organização voltada principalmente para produção ou valor e outra em que segurança e confiabilidade são o foco predominante. Adaptei esta tabela do trabalho de Landau e Chisholm.4 Para resumir apenas alguns dos contrastes, o foco em produção enfatiza a otimização, almejando apenas a quantidade certa de pessoal, ferramentas e suprimentos disponíveis apenas quando são necessários. Por outro lado, organizações de alta segurança ou confiabilidade desejam redundância integrada e têm uma mentalidade de “melhor prevenir que remediar”. A organização de produção trata eventos adversos como anomalias, enquanto a organização de segurança os vê como informações valiosas sobre possíveis disfunções do sistema. A organização de produção tende a ter uma cultura de “vergonha e culpa”, enquanto que, na organização de segurança, quem relata erros ou problemas recebe reconhecimento e até mesmo recompensa. Assim, com uma orientação de produção, o sistema está mais sujeito a erros enquanto em uma organização de segurança, ele é tolerante a erros e, mais importante, será resistente a acidentes graves por meio de uma melhor detecção e recuperação de erros.

Tabela 1: Organizações de saúde focadas em produção x segurança.

Foco em produção Segurança/confiança
Otimização (disponível quando necessário) Redundância (sempre disponível)
Promove a padronização Aceita diversidade/variabilidade
Resistente a mudanças Adaptável e flexível
Eventos adversos como anomalias Eventos adversos como informação
Otimismo sobre os resultados Pessimismo sobre os resultados
Punição do mensageiro Recompensa ao mensageiro
Propenso a erros Tolerante a erros

O conflito entre produção e segurança geralmente ocorre em áreas de procedimentos que são de alto custo (e que potencialmente trazem altas receitas). Aqui, existe uma pressão organizacional constante para melhorar a produtividade (ou seja, o rendimento) e o desempenho financeiro. Ambos podem ser facilmente medidos, ao passo que segurança só pode ser inferida – quando ocorrem acidentes, sabemos que estamos em território inseguro. No entanto, quando não há acidentes, a organização pode ter uma falsa sensação de segurança. Haverá, portanto, uma tendência de “forçar os limites [da segurança]” ao longo do tempo, aumentando o risco de eventos de dano. Até o momento, o único “medidor de segurança” perioperatório que temos são os médicos – sua vontade de falar abertamente, interromper a linha e defender a segurança do paciente e do médico.

Projetar para segurança. A engenharia de fatores humanos (ou EFH) oferece métodos para projetar processos, tecnologia e sistemas a fim de atingir níveis mais elevados de segurança e qualidade. A EFH é a disciplina científica e prática de compreensão e melhoria dos sistemas para o aumento geral de segurança, eficácia, eficiência e satisfação do usuário.5

O Ciclo do Projeto Centrado no Ser Humano (ou no Usuário) (Figura 1) mostra como a EFH projeta, avalia e implanta qualquer ferramenta, tecnologia, processo ou sistema novo ou revisado.

Figura 1: Ciclo de projeto centrado no ser humano.

Figura 1: Ciclo de projeto centrado no ser humano.

O ciclo começa com a compreensão completa do problema que você está tentando resolver. Essa pesquisa leva a uma descrição completa das necessidades dos usuários. Em seguida, você especifica os requisitos do projeto relacionados ao uso. A realização de múltiplas iterações de projeto e avaliação gera uma intervenção ou um produto otimizado que atende aos requisitos desejados. Em seguida, você avalia, antes da implementação total, se o produto ou intervenção resultante realmente atende às necessidades de seus usuários. Na apresentação, dei exemplos de cada fase do ciclo centrado no ser humano com base em nossa pesquisa anterior (veja, por exemplo, as referências 6-9).

POPTEC (pessoas, processos, tecnologia, ambiente e cultura) é como os HFEs pensam sobre os fatores de modelagem de desempenho que afetam o risco de eventos adversos e não rotineiros. O POPTEC fornece, portanto, uma estrutura, não apenas para a pesquisa do usuário, mas para orientar a criação e a avaliação ao longo de todo o ciclo do projeto.5

Conclusão

Para aumentar a segurança do paciente, a organização de saúde precisa criar sistemas resilientes centrados no ser humano. Indivíduos e equipes devem ser treinados no gerenciamento de eventos graves. A padronização é importante tanto para a qualidade quanto para a segurança. Mas, especialmente para a segurança, ela deve ser flexível Os processos e a tecnologia precisam ser projetados para serem orientados para a segurança, tolerantes a erros e facilitar a recuperação de erros. Um sistema robusto de registro de eventos encorajará relatos e oferecerá feedback. Todos os eventos significativos precisam ser analisados ​​para identificar os problemas de segurança mais importantes. Em seguida, deve-se elaborar e avaliar intervenções potenciais usando os princípios da EFH. Esse difícil trabalho deve ser multidisciplinar e colaborativo e deve contar com o envolvimento total de todos os médicos relevantes e outras partes interessadas. Por fim, uma organização precisa de líderes esclarecidos que realmente entendam e priorizem a segurança do paciente e do trabalhador e que se esforcem para criar uma cultura de segurança robusta.

Para encerrar, os anestesiologistas não devem ser simplesmente “pessoas que adormecem os pacientes”. Temos o treinamento, o conhecimento e as habilidades que nos tornam especialmente adequados para sermos líderes de segurança em nossas organizações. Para ter um impacto, precisamos ter uma visão mais ampla de nosso papel na área de saúde a fim de atingir plenamente nosso potencial de melhorar tanto a segurança como a qualidade.

 

Matthew B. Weinger, MD, MS, é professor da cadeira Norman Ty Smith em Segurança do Paciente e Simulação Médica e professor de anestesiologia, informática biomédica e educação médica na Faculdade de Medicina da Vanderbilt University, Nashville, TN, EUA. Ele também é o diretor do Centro de Pesquisa e Inovação em Segurança de Sistemas, Vanderbilt University Medical Center, Nashville, TN, EUA.

O Dr. Weinger é o acionista fundador e consultor pago da Ivenix Corp., um novo fabricante de bombas de infusão. Ele também recebeu uma bolsa de iniciação de pesquisa da Merck no Vanderbilt University Medical Center a fim de estudar a tomada de decisões clínicas.

Referências

  1. Loftus RW, Koff, MD, Birnbach DJ. The dynamics and implications of bacterial transmission events arising from the anesthesia work area. Anesth Analg. 2015;120:853–860.
  2. Liberman, JS, Slagle JM, Whitney, G, et al. Incidence and classification of nonroutine events during anesthesia care Anesthesiology. 2020;133:41–52.
  3. Committee on Systems Approaches to Improve Patient Care by Supporting Clinician Well-Being, National Academies of Science, Engineering, and Medicine. Taking action against clinician burnout: a systems approach to professional well-being. Washington, DC: The National Academies Press, October 2019, 334 pp. doi.org/10.17226/25521. ISBN: 978-0-309-49547-9.
  4. Landau M, Chisholm D. The arrogance of optimism: notes on failure-avoidance management. J Contingencies Crisis Manage. 1995;3:67.
  5. Weinger MB, Wiklund M, Gardner-Bonneau D. (editors): Handbook of human factors in medical device design. Boca Raton, FL: CRC Press, 2011.
  6. Anders S, Miller A, Joseph P, et al. Blood product positive patient identification: comparative simulation-based usability test of two commercial products. Transfusion. 2011;51: 2311–2318.
  7. Anders S, Albert R, Miller A, et al. Evaluation of an integrated graphical display to promote acute change detection in ICU patients. Inter J Med Inform. 2012; 81: 842–51.
  8. Weinger M, Slagle, J, Kuntz A, et al. A multimodal intervention improves post-anesthesia care unit handovers. Anesth Analg. 2015;121:957–971.
  9. Weinger MB, Banerjee A, Burden A, et al. Simulation-based assessment of the management of critical events by board-certified anesthesiologists. Anesthesiology. 2017;127:475–89.