A anestesia epidural causa autismo? (Não.) Uma análise desta polêmica e fatos que pacientes e profissionais precisam conhecer

Caroline Thomas, MD; Jennifer M. Banayan, MD

Contexto

EpiduralO autismo é um transtorno do desenvolvimento caracterizado por déficits persistentes na comunicação e interação social, sendo frequentemente associado à presença de comportamentos estereotipados ou repetitivos.1 A incidência de autismo nos Estados Unidos está aumentando, o que levou a pesquisas direcionadas à identificação de fatores de risco para esse transtorno.2,3

A verdadeira etiologia do autismo é desconhecida. Por 40 anos, a pesquisa se concentrou na exposição perinatal e neonatal e sua relação com o autismo, sem que fossem identificadas respostas definitivas.4 Fatores obstétricos e de parto, além da exposição neonatal, foram examinados e muitos dos resultados foram inconsistentes.5 Apesar das inconsistências na literatura, a maioria dos especialistas concorda que o mecanismo subjacente à etiologia do autismo inclui uma combinação de fatores de risco ambientais e genéticos.5 Em 12 de outubro de 2020, foi publicado um artigo intitulado “Association between epidural analgesia during labor and risk of autism spectrum disorders in offspring” no periódico JAMA Pediatrics,6 que gerou forte debate e recebeu várias respostas e críticas. Esta revisão descreverá formalmente as publicações existentes sobre o potencial de uma correlação entre anestesia epidural e autismo, apresentará a controvérsia relacionada ao assunto e discutirá pontos importantes a serem considerados por pacientes e profissionais.

Artigo do JAMA Pediatrics

O objetivo dos autores foi avaliar se a exposição à anestesia peridural lombar (APL) estava associada a um risco aumentado de desenvolvimento de autismo na prole. O estudo é uma análise de coorte longitudinal retrospectiva de 147.895 crianças únicas nascidas por parto vaginal com 28 a 44 semanas de idade gestacional no sistema hospitalar Kaiser Permanente Southern California entre 1º de janeiro de 2008 e 31 de dezembro de 2015.

Tanto os registros anestésicos quanto as avaliações de autismo estavam prontamente disponíveis para análise, pois os pesquisadores tinham acesso a um sistema geral de prontuário eletrônico e a um método padronizado para avaliação de autismo em crianças aos 18 e 24 meses.

No estudo do JAMA Pediatrics, os autores relataram uma taxa de uso de anestesia peridural de 74,2% e descobriram que uma porcentagem significativamente maior (1,9%) de crianças no grupo APL recebeu um diagnóstico de transtorno do espectro autista (TEA) em comparação a 1,3% das crianças no grupo não APL (RR de 1,37; IC de 95% 1,23-1,53). Entre as crianças nascidas de mães no grupo APL, a maior duração da exposição à APL foi associada a maior risco de TEA (RR de 1,05 por 4 horas de exposição à APL, IC de 95% 1,01-1,09). Em sua discussão, os autores expressam preocupação em relação à segurança e saúde a longo prazo da prole exposta à APL e sugerem que mais pesquisas são necessárias para identificar o mecanismo da associação entre APL e autismo.6

A resposta

Os críticos do artigo expressaram preocupações sobre a metodologia e as implicações clínicas do estudo. No mesmo dia em que o artigo acima foi publicado, cinco sociedades médicas que representam mais de cem mil médicos, incluindo a American Society of Anesthesiologists, a American College of Obstetricians and Gynecologists, a Society for Obstetric Anesthesia and Perinatology, a Society for Pediatric Anesthesia e a Society for A Maternal-Fetal Medicine, divulgaram uma declaração conjunta destinada a tranquilizar as gestantes de que a analgesia neuroaxial é segura, eficaz e o “padrão ouro para o alívio da dor no trabalho de parto”. A declaração reitera que o estudo “não fornece evidências científicas confiáveis de que a analgesia epidural no trabalho de parto para alívio da dor causa autismo” e adverte contra a implicação de causalidade a partir de um estudo observacional.7 Eles reforçam a segurança das anestesias epidurais com base na experiência de milhões de mulheres a cada ano e questionam a plausibilidade biológica do estudo devido aos baixos níveis de exposição do feto a drogas no cenário de anestesia local peridural em baixa dose e opiáceos usados na prática comum. Eles encorajaram as mulheres a continuar utilizando formas seguras de aliviar a dor para uma experiência de parto positiva.

Tabela 1: Comparação de análises retrospectivas de 2020-2021

Tabela 1: Comparação de análises retrospectivas de 2020-2021

TEA: transtorno do espectro autista, APL: analgesia peridural lombar, RR: razão de risco, IC: intervalo de confiança

Foram publicados vários estudos retrospectivos de base populacional realizados no Canadá e na Dinamarca com o objetivo de reavaliar a associação entre anestesia epidural e autismo que contradizem os achados no artigo do JAMA Pediatrics (Tabela 1).8-10 Os estudos de acompanhamento aumentaram o número de covariáveis na tentativa de minimizar os fatores de confusão residuais e alguns deles realizaram múltiplas análises de sensibilidade para avaliar possíveis vieses. Dos três estudos, dois não encontraram associação entre APL e TEA.8,10 Um estudo da Colúmbia Britânica, Canadá, indicou uma associação pequena, mas estatisticamente significativa, entre analgesia peridural e autismo.11 No entanto, múltiplas análises de sensibilidade dentro do estudo não mostraram uma associação e, com base em seus achados, os autores relataram que, dada a alta probabilidade de fatores de confusão residuais, os resultados não fornecem evidências suficientes para uma associação.

Além das sociedades médicas, vários indivíduos publicaram análises, críticas e cartas ao editor com suas próprias preocupações relacionadas ao artigo original. O Editor-Chefe do JAMA Pediatrics publicou uma Nota do Editor em resposta ao artigo, observando que sua “avaliação pessoal é que não há ainda uma associação definitivamente estabelecida. Se um estudo mais definitivo for realizado, o JAMA Pediatrics o publicará.”12 Diversos especialistas expressaram preocupação com a confusão residual e não controlada no artigo original.12-15 Por exemplo, algumas respostas sugeriram que a presença ou ausência de TEA nos pais deveria ter sido considerada no estudo original, considerando que o TEA é estimado como sendo 40-80% geneticamente determinado.16 Outros questionaram a plausibilidade biológica de que um anestésico local em baixa dosagem administrado à mãe apenas algumas horas antes do nascimento possa levar a uma toxicidade anestésica local suficiente para afetar permanentemente o cérebro em desenvolvimento.9,13-15 Os dados sobre qualquer relação causal entre APL e o desenvolvimento neurológico anormal em humanos e animais são muito escassos.17-20

Outra revelação interessante é que os estudos que tentam identificar uma correlação entre TEA e APL identificaram diferenças substanciais no valor de base entre as mulheres que recebem e não recebem analgesia epidural. Algumas das variáveis de confusão incluem idade materna, raça, etnia, nível de escolaridade, renda familiar, diabetes materno, pré-eclâmpsia e idade gestacional.21 Essas diferenças sugerem que as mulheres que receberam analgesia epidural podem ser inerentemente diferentes daquelas que não a receberam. Como é difícil dar conta de aspectos globais da saúde materna, como estado mental geral, nutrição, autocuidado/cuidado pré-natal, tanto o artigo original como os estudos retrospectivos subsequentes provavelmente conterão fatores de confusão residuais.21

Procedimento epiduralA APL oferece uma série de benefícios importantes para as mulheres em trabalho de parto. A analgesia neuroaxial oferece um manejo da dor melhor que a analgesia IV ou o óxido nitroso.22 A presença de um cateter peridural in situ atua como um mecanismo de segurança para mulheres que necessitam de cesariana de urgência ou emergência, evitando potencialmente o aumento dos riscos associados à anestesia geral, melhora os escores de dor pós-parto e permite que a mãe estabeleça um vínculo com o bebê imediatamente após a cesariana.22,23 Consequentemente, uma das preocupações mais sérias com o estudo do JAMA Pediatrics é a inferência de uma relação causal entre APL e TEA, o que pode levar a um nível significativo de ansiedade materna e culpa pela escolha da APL para alívio da dor no trabalho de parto. Isso pode levar a uma redução no uso de APL, tendo o potencial de aumentar as taxas de anestesia geral em cesarianas de emergência, o que, por sua vez, pode aumentar a exposição neonatal a medicamentos maternos e aumentar a morbidade materna.15,16,22-25
Os autores do artigo no JAMA Pediatrics sugeriram que seus achados indicam a importância de pesquisas futuras para “compreender melhor a segurança da APL para o desenvolvimento neurológico de nossos filhos”.26

Embora a discussão do artigo do JAMA Pediatrics afirme claramente não haver relação causal entre APL e autismo, é difícil vislumbrar esse ponto a partir do seu título e resumo.6 Às vezes, associações não causais podem ser mal interpretadas pelo público em geral e é comum ter representações imprecisas de dados na mídia. Um exemplo disso é a suposição de que vacinas causam autismo, uma preocupação que começou a partir de um único estudo, posteriormente retirado da Lancet em 1998, que acabou levando à hesitação vacinal generalizada, o que a OMS classificou como uma das dez principais ameaças à saúde global.27,28 É preciso muito cuidado ao se discutir os riscos e benefícios das anestesias epidurais com os pacientes para dissipar imprecisões e enfatizar sua segurança.

Em conclusão, nenhuma publicação posterior apresentou evidências conclusivas de uma associação ou correlação entre APL e TEA, apesar do uso de metodologias mais rigorosas. Ao discutir riscos e benefícios com nossos pacientes, devemos ter cuidado para reforçar o perfil de segurança da APL. Embora as preocupações sobre a associação entre TEA e APL pelos pacientes não devam ser menosprezadas, as publicações atuais não comprovam uma correlação nem uma relação causal entre os dois, e esse fato deve ser firmemente reiterado a todos os nossos pacientes.

 

Caroline Thomas, MD, é bolsista de Anestesiologia Obstétrica na Northwestern University Feinberg School of Medicine.

Jennifer Banayan, MD, é professora associada de Anestesiologia da Northwestern University Feinberg School of Medicine. Ela também é editora do Boletim da APSF.


Os autores não apresentam conflitos de interesse.


Referências

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